“A Bela e a Fera” simboliza amor humano: erótico e imperfeito
História também mostra como supervalorização do pai prejudica vida afetiva da mulher
“A Bela e a Fera” é um dos contos mais famosos do mundo e em março deste ano chegará aos cinemas, no Brasil, mais uma adaptação desta bela história, que tanto nos encanta. O conto já teve diversas versões que se diferem do original, como a famosa adaptação para o cinema de 1991. Essas versões foram adaptadas de forma a se adequar ao momento histórico de uma cultura.
Originalmente a história trata de uma iniciação e do despertar do feminino, podendo auxiliar a mulher a redescobrir sua feminilidade tão machucada e esquecida.
Originalmente a história trata de uma iniciação e do despertar do feminino, podendo auxiliar a mulher a redescobrir sua feminilidade tão machucada e esquecida.
Por mais que hoje a mulher possa participar dos mitos masculinos que fortalecem sua personalidade, há uma região de sua mente que ainda luta para vir à superfície, com o intuito de torná-la mulher, e não apenas uma caricatura de homem.
Há uma necessidade imperiosa no interior de cada mulher que visa esse reencontro. No entanto, essa necessidade é por vezes reprimida, pois ameaça suas prerrogativas recentes de emancipação, igualdade de relacionamento e competição com os homens. Mas hoje é extremamente fácil para a mulher atual manter-se identificada com os objetivos intelectuais masculinos, com que se familiarizou na escola ou na faculdade, reprimindo, assim, essas necessidades interiores. Talvez seja justamente por espelhar essa iniciação que a história tenha tanta aceitação e emocione as mulheres de uma forma tão contundente.
Como Bela se apaixona pela Fera
O conto, então, relata a história da filha mais nova de um rico comerciante, que tinha mais três filhas. Porém, enquanto as mais velhas gostavam do luxo, de festas e de lindos vestidos, a mais nova, que todos chamavam Bela, era humilde, gentil, e generosa, se interessava por leitura e tratava bem as pessoas.
A menina tornou-se, graças à sua bondade e abnegação, a preferida do pai. Bela está identificada e em simbiose com a figura paterna. O pai representa os valores patriarcais externos que regem a sociedade hoje: ser bem-sucedido e eficiente e ter uma carreira.
Bela está identificada e em simbiose com a figura paterna. O pai representa os valores patriarcais externos que regem a sociedade hoje: ser bem-sucedido e eficiente e ter uma carreira.
Um dia, o pai parte em uma viagem para conseguir melhorar a situação da família, pois perdeu toda sua fortuna. Aproveitando que iria até à cidade, as filhas gananciosas encomendaram a ele vestidos e joias caras, enquanto Bela, sempre preocupada com seu pai, pede somente uma rosa.
Na volta, então, o pai é pego por uma terrível tempestade e se abriga em um castelo que encontrou no meio da floresta. Lá encontra alimentos que o ajudam a suprir suas necessidades e consegue dormir confortavelmente. Amanhecendo, ele vê um jardim enorme, cheio de rosas. Lembrando-se do pedido de Bela, decide pegar uma para a filha. Mas, ao fazer isso, o mercador é surpreendido por uma Fera furiosa, que lhe impôs uma condição para viver: exige que o culpado volte dentro de três meses para ser punido, provavelmente com a morte.
Ao chegar a casa, o pai relata o ocorrido às filhas. Bela, desesperada com a situação, decide se entregar no lugar dele. A menina chega ao temível castelo já imaginando que seria devorada pela Fera. Mas, ao invés disso, a Fera vai se mostrando aos poucos como um ser sensível e amável, fazendo todas as suas vontades e tratando-a como uma princesa.
Ela recebe visitas ocasionais da Fera, que aparece para perguntar-lhe se um dia aceitará seu pedido de casamento. Bela recusa o pedido sistematicamente. Um dia, vendo no espelho mágico a imagem do pai doente, implora à Fera que a deixe ir confortá-lo, prometendo voltar dentro de uma semana. A Fera deixa-a ir dizendo-lhe, entretanto, que ela morrerá se o abandonar.
Ao voltar para casa de origem, a radiosa presença da Bela traz alegria ao pai e inveja às irmãs, que tramam retê-la por mais tempo. Mas, Bela sonha que a Fera está prestes a morrer de desespero e, dando-se conta de que seu prazo já se esgotara, volta para fazê-la reviver. Esquecendo-se da sua feiura, ela o trata com carinho e percebe que o ama e aceita o pedido de casamento dele. Mal pronunciou essas palavras, a Fera se transformou em um lindo príncipe, que conta ter sido encantado por uma feiticeira e condenado a viver sob a forma de uma Fera, até que uma donzela aceitasse se casar com ele.
História mostra como supervalorização do pai prejudica vida afetiva da mulher
No conto, vemos uma mulher envolvida em uma ligação afetiva muito forte com o pai. A mãe não é citada, aumentando, assim, a supervalorização da figura paterna. Algo comum de acontecer com a mulher, sendo bastante prejudicial para seus futuros relacionamentos. O fato de não ter mãe simboliza uma fraqueza e incerteza sobre a feminilidade da heroína, o que a deixa suscetível à dominação dos conceitos masculinos.
Os valores femininos passados pela mãe são rejeitados, ao mesmo tempo que os valores masculinos são supervalorizados. O conto retrata, então, um embate da mulher com seu lado masculino, pois este se desenvolve a partir da experiência com o pai pessoal.
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Rosa simboliza desejo de se livrar de conceitos que não trazem riqueza
O fato do pai ficar pobre e ter de viajar em busca de riquezas reflete a sociedade atual: os recursos não são buscadas internamente e os valores subjetivos da alma também não são valorizados.
A rosa que Bela pede ao pai pode ser um pedido de ajuda inconsciente. Sua bondade e desejo de se livrar desses conceitos que já não lhe trazem riquezas estão simbolizados nesta encomenda.
A rosa que Bela pede ao pai pode ser um pedido de ajuda inconsciente. Sua bondade e desejo de se livrar desses conceitos que já não lhe trazem riquezas estão simbolizados nesta encomenda.
O que ela não sabe, ao pedir a rosa, é que está a ponto de pôr em perigo a vida do pai e o relacionamento ideal existente entre os dois. É como se ela desejasse ser salva de um amor que a mantém virtuosa, mas em uma atitude irreal.
A rosa também está associada à deusa Afrodite e indica uma busca de amor erótico e transcendental, bem como a união com seu oposto. Bela deseja inconscientemente quebrar esse pacto de união com o pai e experimentar o amor por outro homem. Isso significa que a menina deseja sair da experiência do apego à lei masculina – representada no pai – que transforma um homem em Fera, para o amor carnal através do seu lado feminino, do seu desejo e sentimento.
Descobrindo sua deusa interior
Fera reflete amor humano: erótico e imperfeito
Para deixar o pai, ela precisou aceitar o desejo erótico – que estava encoberto em uma fantasia incestuosa simbólica – para conhecer o homem animal e descobrir suas verdadeiras reações como mulher.
Ao conviver com a Fera, Bela percebe que ele é sensível e realiza todas as suas vontades a despeito de sua aparência. A menina se afeiçoa a ele, que a pede em casamento várias vezes, sendo recusado em todas elas. A imagem de um masculino diferente do pai passa de hostil a gentil.
Essa convivência desperta a moça para o poder do amor humano disfarçado em forma animal (e, portanto, imperfeita), mas também genuinamente erótico. Esse despertar para o amor erótico pode ser assustador para a mulher. Ao ver o animalesco dentro dela mesma, Bela se assusta e tenta fugir, pois ali está uma feminilidade profunda, próxima aos instintos terrenos. Ela precisa passar pelo animalesco para, então, entrar em contato com o amor mais elevado, unindo esses dois aspectos na relação com o homem.
Fera também existe dentro de cada mulher
Outro aspecto interessante é que a figura do pai rouba a rosa do jardim, atraindo a Fera furiosa, que defende esse feminino delicado. Por vezes, a mulher precisa se defender, utilizando uma força masculina animal, sua delicadeza. A flor representa algo belo, mas frágil e delicado da feminilidade.
Ao furtar a rosa, o pai coloca em risco essa feminilidade, pois ela pode morrer muito rápido. Hoje é comum que a mulher desenvolva seu lado masculino com facilidade. Isso é incentivado até, mas dentro disso, essa alma feminina que quer se relacionar clama por ser ouvida.
Hoje é comum que a mulher desenvolva seu lado masculino com facilidade. Isso é incentivado até, mas dentro disso, essa alma feminina que quer se relacionar clama por ser ouvida.
E nesse confronto ela descobre que ama a Fera de verdade, pois com ele Bela se sente incluída, vista e respeitada em seus desejos. Tudo o que o feminino busca.
A redenção da Fera é feita por meio do amor. Ao sentir saudades da Fera, ela quebra a sua simbiose com o pai ou, então, a Fera morre. O aspecto animal, hostil e assustador se vão e ela pode ver realmente quem é seu marido. Com isso, seu lado humano pode se manifestar.
Esse conto, então, nos fala da iniciação feminina no campo do amor carnal. O encontro com sua feminilidade mais profunda, através da Fera que existe dentro dela.
+ da autora
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É analista Junguiana e especialista em Mitologia e Contos de Fadas. Atua como psicoterapeuta, professora e palestrante de Psicologia Analítica em SP e RJ.
Saiba mais sobre mim- Contato: hellenmourao@gmail.com
- Site: http://www.cafecomjung.com